Ela desenhou um castelo, um belo castelo, no muro. Usara giz e pedaços de tijolo. Entrou em casa sorrindo. Não sorria normalmente, mas de uma forma aquele desenho a fazia feliz, a dava um certo brilho esverdeado nos olhos.
Sua rotina era sempre a mesma: acordar, ir à escola, voltar pra casa, almoçar -geralmente sozinha, mesmo com uma família grande- e ir pro quintal, onde passava o resto do dia. As vezes passava as noites na casa da árvore, que já estava lá quando chegaram. Nessas noites, passava horas acordada sonhando com dias melhores e felicidade. Também sonhava com carneirinhos que entravam pela janela da casa da árvore e lhe contavam estorinhas encantadoras.
Era de manhã bem cedo. Todos haviam acordado, menos sua irmã mais nova. Nunca mais acordou. Pela primeira vez a menina conhecia a morte bem de perto. Sua cor não era negra, era pálida. Fria e pálida. A cada grito de desespero a menina dava um passo à frente, até que ficou bem perto da mãe e a abraçou.
Depois do enterro a menina, ainda sem derramar nenhuma lágrima, subiu na casa dá árvore e esperou seu carneirinho companheiro. Ele não veio essa noite. Vieram apenas lembranças da irmãzinha fria deitada sem vida. Por um momento acendeu uma esperança: "Minha família se unirá por isso". Ao pensar isso um aperto no coração e uma garganta fechada a fez derramar rios de lágrimas. Só fez pedir perdão à Deus pelo pensamento e se deixou dormir.
Dias depois uma crise maior do que a cotidiana. Seus pais brigavam como nunca, e de forma mais agressiva. Assustada a menina recorreu ao muro. Seu desenho ainda estava lá. Estava se apagando, mas ainda era perceptível. Retocou o desenho e em seguida desenhou uma fonte ao lado do castelo.
Tempos depois, no seu aniversário precisamente, a menina pediu uma pequena festa, pra poder chamar seus melhores amigos. Seu pai recusou seu pedido mais uma vez. Dessa vez a mãe resolveu discutir com o pai sobre o assunto. Pronto.
Se deu um silêncio fora do normal. A menina foi ver o que era. Se dirigiu a cozinha e lá viu a mãe caída no chão, aos prantos, e seu pai apoiado na mesa com uma mão e a outra massageando as têmporas. Ao ver a menina, o pai se transformou num ser extraordinariamente assustador. Gritou:"A culpa é sua! Isso - apontava para a mãe, caída- isso, é culpa sua!". Ela fugiu das acusações, dos gritos monstruosos e se aconchegou, claro, na casa da árvore. Mas antes parou no jardim e reparou que seu desenho havia sido apagado.
Chorava. "A culpa é realmente minha". Chorava. Seria mesmo sua culpa? Não. Mas quando se está com raiva todos são culpados. Certo que a discussão começou por um pedido feito pela menina, mas o resto, ela não tinha nenhum tipo de envolvimento. Pura maldade culpá-la. Sem esquecer que se trata de uma criança.
"Carneirinhos, venham" - pediu. Essa noite não dormira. Passou em escuridão tentando esclarecer suas ideias. Já não chorava, mas estava extremamente pertubada. Sentiu uma dor que atravessava seu corpo e que pareceu explodir seu coração. Dor, muita dor. Não física, mas espiritual. Nunca havia se sentido tão culpada. Esqueceu seu aniversário, seus sonhos, seus amigos e sua família. Não estava feliz. Não era feliz.
Não foi vingança, não foi lição. Foi uma explosão de sentimentos nunca sentidos antes e expressos num único ato. O último ato. Com uma overdose de remédios e um copo de uma bebida que ela não conhecia -mas sabia as consequências do que fazia pelas ameaças em que a mãe dizia fazer o mesmo- se despediu do mundo, da vida, dos carneirinhos, do castelo, da fonte. Adeus, pra sempre.
Mas deixou uma carta:
Meu castelo foi apagado. Minha fonte enfim secará.
O castelo desmoronou encima de mim. Deus me perdoe.
Mas o castelo desmoronou e não posso fazer nada, a culpa foi minha...
Seu castelo era sua família, e sua fonte a tristeza.
No fim, sua morte serviu para reunir sua família caracterizada por perdas. Foi mais eficaz que sua irmã nesse ponto. Mas nada consola a perda de uma criança que se foi com as lembranças do que ainda não tinha vivido. Tão menina e já conhecia tanto mal. Adeus, pra sempre...